Livro: Ordem Vermelha: Filhos da Degradação
Autor (a): Felipe Castilho
Editora: Intrínseca
Páginas: 448
ISBN: 978-85-510-0269-8
Sinopse: Você destruiria seu mundo em nome da verdade? A última região habitada do mundo, Untherak, é povoada por humanos, anões e gigantes, sinfos, kaorshs e gnolls. Nela, a deusa Una reina soberana, lembrando a todos a missão maior de suas vidas: servir a Ela sem questionamentos. No entanto, um pequeno grupo de rebeldes, liderado por uma figura misteriosa, está disposto a tudo para tirá-la do trono. Com essa fagulha de esperança, mais indivíduos se unem à causa e mostram a Una que seus dias talvez estejam contados. Um grupo instável e heterogêneo que precisará resolver suas diferenças a fim não só de desvendar os segredos de Untherak, mas também enfrentar seu mais terrível guardião, o General Proghon, e preparar-se para a possibilidade de um futuro totalmente desconhecido. Se uma deusa cai, o que vem depois?Ordem Vermelha: Filhos da Degradação é o preâmbulo da jornada de quatro improváveis heróis lutando pela liberdade de um povo, um épico sobre resistir à opressão, sobre lutar contra o status quo e construir bravamente o próprio destino. Porta de entrada para um novo mundo com inspirações de fantasia medieval, personagens marcantes e uma narrativa que salta das páginas a cada vila, ruela e beco de Untherak.

Felipe Castilho é autor de livros de fantasia. Famoso pela série O legado folclórico, que une mitologia brasileira com o mundo dos videogames, foi indicado ao Prêmio Jabuti pelo quadrinho Savana de pedra. Ordem Vermelha: Filhos da Degradação é seu livro de estreia na editora Intrínseca, lançado em conjunto com Rodrigo Bastos Didier e Victor Hugo Souza durante a CCXP, em dezembro do ano passado.

    Una – este é o nome da deusa que reúne em si os seis primeiros deuses, aqueles que criaram o mundo e tudo o que nele existe. Eles criaram as montanhas, onde habitavam os gigantes. Criaram as cavernas, onde habitavam os anões. Criaram as águas, onde habitavam os gnolls (criaturas velozes, hábeis e silenciosas). Criaram os bosques e neles puseram os sinfos (seres pequenos e frágeis, que têm forte ligação com a natureza). Para os terrenos rochosos e selvas fechadas, fizeram os kaorshs (de forma humanoide, são criaturas altas e esguias com a capacidade de dar cor às coisas). Por fim, deram aos humanos as planícies, para que pudessem plantar, colher e amar tudo que era cultivado.
   Com o tempo, os humanos passaram a invejar as outras criaturas e disseminaram caos, que só resultou em morte, destruição e derramamento de sangue. Foi assim que os deuses condenaram todas as seis raças com fortes punições, transformando os gnolls em monstros irracionais, os sinfos tiveram seu tempo de vida reduzido, os anões ficaram confinados em cavernas, os kaorshs tiveram as cores presas em seus corpos como camaleões, os gigantes foram praticamente extintos, e os humanos se tornaram a mais fraca de todas as raças. Diante de tantos lamentos, o mundo foi chamado de Degradação e passou  ter apenas uma região habitável: Untherak.
    Os seis deuses, revoltados com o derramamento de sangue, proibiram a cor vermelha, e após todos esses eventos, se tornaram Una, uma só deusa. A partir daí o mundo tomou outro rumo e as raças passaram a servir Una e a adorá-la, vivendo em eterna servidão – em maior ou menor grau. O tempo passou, e essa foi a história contada durante séculos. Como forma de liberar a violência e promover um show para si e para o povo, Una criou o Festival da Morte, onde o pai de Aelian, um simples humano, foi morto quando ele ainda era pequeno. Depois de anos sem ouvirem falar no tal Festival, uma nova edição passa a ser organizada. 
    Algum tempo se passou, Aelian cresceu e se tornou um ótimo escalador, violador de regras e servo de um poleiro. Mas nunca esqueceu o que aconteceu com seu pai. Quando fica sabendo que duas kaorshs – as esposas Raazi e Yanisha – se inscreveram no Festival, e parecem dispostas a lutar até a morte como fez o seu pai, Aelian resolve ajudar e alertá-las do perigo. Porém, isso acaba desencadeando uma série de eventos que nem ele, nem as kaorshs, poderiam imaginar. Agora, mais do que nunca, eles precisam se unir a um grupo improvável de rebeldes e desmascarar o sistema que assolou o povo de Untherak desde o início dos tempos.

"Untherak era um corpo doente, como a maioria de seus moradores" (p. 377).

    Ouvi falar sobre Felipe Castilho no ano passado, quando concorreu ao prêmio Jabuti por Savana de Pedra. Quando soube que lançaria um livro na CCXP em dezembro do mesmo ano, fiquei animada, pois se tratava do primeiro livro lançado no evento e isso, claro, representou um grande avanço para a literatura nacional contemporânea. Já havia recebido a recomendação para ler Ordem Vermelha, pois gosto de todo tipo de fantasia, mas das muitas obras do gênero que li poucas foram nacionais. Antes mesmo de conhecer a história, o livro já despertou meu interesse, e após ouvir falar mais, o desejo de me aventurar pelas páginas dele só aumentou.
    A narrativa ocorre em terceira pessoa e tem como focos os protagonistas e alguns secundários, cujos pontos de vista alternam a cada capítulo. Ela é linear, porém, entrecortada por uma narração paralela, que mostra a continuação da história no futuro através dos olhos de um personagem misterioso, que só revela sua identidade no capítulo final – ela é mostrada ao fim de cada uma das partes (o livro é dividido em três). A escrita de Castilho é objetiva e bem formulada, encaixando-se bem naquilo que se espera de uma fantasia, conseguindo prender o leitor do início ao fim. A história segue um ritmo frenético – apesar de possuir clímax bem definido, conta com diversas cenas de ação.
   Como o próprio autor afirma em seus agradecimentos, é possível notar as várias referências utilizadas na obra – desde inspirações em produtos da cultura pop até referência a sistemas políticos e econômicos semelhantes ao Brasil. Trabalhando com diversas criaturas fantásticas como sinfos (muito parecidos com o que conhecemos como elfos ou fadas), anões e gigantes, foi impossível não lembrar de O Senhor dos Anéis e até da mitologia nórdica.
    Quando a história se referia ao funcionamento do governo de Una, baseado na adoração sem limites à deusa e na servidão cruel do povo, não pude evitar fazer ligações diretas com o tipo de governo brasileiro (o antigo e o atual) e outros governos tiranos ao redor do mundo. O pano de fundo da narrativa também lembra bastante o tempo medieval – e o que não falta para esse cenário são referências! O mais incrível é que Castilho conseguiu juntar todos esses elementos previamente concebidos e montar uma história cheia de originalidade.
    Cada personagem tem sua história para contar e seus dramas pessoais. Aelian é o que mais chama a atenção, pois acompanhamos seus passos desde o começo e sentimos junto com ele a perda dos pais – graças ao temido Festival da Morte. Apesar de ter todos os motivos para se encolher num canto e chorar, Aelian é ousado, destemido e ativo, sempre buscando telhados para pular e regras para quebrar. Ele é o tipo de personagem que vai amadurecendo aos poucos e consegue conquistar facilmente, mesmo sendo um “mocinho” nada típico: cheio de falhas e questões morais a serem resolvidas. Raazi, a kaorsh que ao lado da esposa resolve encarar o desafio na arena do Festival da Morte, é tão corajosa quanto boa lutadora, e minha personagem preferida da série até então.

"A música tocada dentro da cabeça era um segredo que ninguém poderia tirar dela, ao contrário do ouro e de tudo o mais que poderia ser roubado, vendido ou destruído.
– Quando uma música é ensinada a alguém, ela se torna capaz de viver mais que os nossos corpos" (p. 88).

    Enquanto Aelian tem a destreza para escalar, Raazi tem a destreza para lutar. A partir da descoberta de uma verdade que pode abalar o destino de Untherak, esses dois personagens de unem contra o sistema opressor no qual são subjugados e, junto a uma equipe improvável de rebeldes, realizam grandes feitos. Aparição, uma personagem que é o pivô de toda a revolução que ocorre dentro dos muros da última região habitada, se torna aquela que guia e instrui todos os outros por caminhos iluminados pela verdade – além de ser essencial, é umas das personagens mais espetaculares. Ao contrário dos demais, parece não cometer erros, e talvez isso a faça uma verdadeira heroína.
    Outros personagens incríveis são o sinfo e o anão, que fazem parte do núcleo principal da história. O primeiro, aparenta ser frágil, mas nos momentos mais difíceis consegue mostrar sua força. O segundo, aparenta rudeza, mas sua carapaça é retirada e ele demonstra sensibilidade em momentos precisos. Além disso, o antagonista é muito bem trabalhado – desde sua origem até sua ascensão –, inclusive é difícil definir que ele é o verdadeiro vilão até que os mistérios que cerceiam o enredo comecem a se revelar.
    A representatividade foi tão forte quanto sutil: a presença de personagens homossexuais – como as próprias Raazi e Yanisha –, negros, mulheres fortes e guerreiras, são marcas tão naturais ao longo da narrativa, que em determinado momento comecei a me acostumar, e não a me surpreender, com a presença de tais personagens. A euforia que senti ao perceber a representação que a obra contém por meio deles, me fez perceber que precisamos de mais personagens assim em nossa literatura fantástica, para que se torne natural, como tem que ser.
    O livro carrega uma capa digna do conteúdo, cuja arte foi realizada por Rodrigo Bastos Didier. Por se tratar de uma fantasia, acredito que haja elementos que revelam o enredo e se harmonizam com o gênero: o uso de cores fortes, as ilustrações representando os personagens e o cenário da história, a atenção dada às fontes das letras e ao tipo de efeito visual que todo o conjunto forma. A diagramação é muito bonita, com o contraste das páginas pretas definindo os finais dos capítulos e a narrativa paralela. Minha única crítica vai para o mapa de Untherak, que apesar de ser muito bem feito e explicativo, poderia estar no início do livro, para que acompanhássemos a trajetória dos personagens desde o início.
    Em pouco mais de 400 páginas, Castilho conseguiu criar um universo extremamente cativante e tão incrementado por detalhes que se eu fosse comentar todos aqui – e eles mereciam ter esse destaque –, não terminaria de escrever esta resenha. Desde os elementos visuais até a maneira como a história foi escrita, apontam para um cuidado e dedicação exemplares por parte não só do autor, mas de todos os envolvidos – que ele faz questão de reconhecer em seus agradecimentos. Castilho é a prova de que nossa literatura nacional contemporânea pode ser rica em originalidade. Ordem Vermelha possui tudo o que eu espero de um livro de fantasia (e um pouco mais). Estou aguardando ansiosa pelo próximo, afinal, o epílogo é quase uma chama para a continuação.

Primeiro parágrafo: “No princípio, não havia nada, somente os Seis Deuses. E, em toda a sua bondade, eles teceram o manto dos céus – um lado escuro e cravejado de pedras preciosas, o outro, claro e com uma pepita de ouro incrustada. Os Deuses o estenderam acima da superfície que abrigaria as águas, os montes e tudo mais que a vasta imaginação dos Seis ousasse materializar”.
Melhor quote: “Chegamos até aqui porque não temos medo de rastejar [...]. É isso o que acontece quando se é forçado contra o chão por tanto tempo. Aprendemos a não temê-lo”.
“Cada um repara de um jeito na areia que cai na ampulheta, seja grão a grão ou num fluxo contínuo. O tempo é relativo”.






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