Livro: Cidade em Chamas
Título Original: City on Fire
Autor: Garth Risk Hallberg
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 1043
ISBN: 9788532518750
Sinopse: Nova York, 1976. O sonho hippie acabou, e dos escombros surge uma nova cultura urbana, com guitarras desafinadas, coturnos caindo aos pedaços, galerias de arte e casas de show esfumaçadas. Regan e Willian são herdeiros de uma grande fortuna. Ela, uma legítima Hamilton-Sweeney, vê seu casamento desmoronar em meio às infidelidades do marido. Ele, a ovelha negra, fundador de uma mitológica banda punk e uma figura lendária das artes de Nova York. Ao redor dos dois gira uma constelação de personagens e acasos — uma jovem fotógrafa, um professor negro e gay, um grupo de ativistas, um garoto careta e asmático e um jornalista que sonha ser o novo nome do jornalismo literário americano. E, em meio a tudo isso, um crime que vai cruzar essas vidas de forma imprevisível e irremediável. Cidade em chamas é um romance inesquecível sobre amor, traição e perdão, sobre arte, rock e o que significa a verdade. Sobre pessoas que precisam umas das outras para sobreviver. E sobre o que faz a vida valer a pena.

Garth Risk Hallberg nasceu na Louisiana e foi criado na Carolina do Norte, no Sul dos Estados Unidos. Porém, se considera nova-iorquino, pois sente que a cidade é o seu lar e a ama como se fosse seu conterrâneo. Em 2013, o autor vendeu Cidade em Chamas, seu primeiro romance, para a editora Knopf por US$ 2 milhões de dólares, um valor impensável a um escritor pouco conhecido. Mesmo assim, o livro rendeu críticas bastante positivas no mercado editorial americano, mesmo que o número de páginas fosse extenso demais (detalhe: na língua inglesa, há cem páginas a menos que na versão brasileira). Scott Rudin, de As Horas e Francês Ha comprou os direitos cinematográficos da obra.

    O cenário é de uma Nova York extremamente desgastada, mas inteiramente em polvorosa. É retratado o aumento da violência, a crise financeira que consequentemente gerou muito desemprego e pobreza, inclusive mostra o quanto os bairros de periferia foram locais de resguardo de muitos artistas de artes plásticas, como um dos personagens. A cidade estava sofrendo constantes choques culturais, e, para elevar ainda mais a euforia da época, as liberdades individuais estavam sendo contestadas o tempo inteiro. Movimentos culturais passaram a tomar forma. O Hippie ficou de lado para dar espaço ao Punk. A síntese desse movimento hoje é chamada de "contracultura", e estuda-se sobre isso nas aulas de história, embora na época, fosse motivo de escândalo levar a cultura revolucionária a ser objeto de estudo entre os mais jovens.
    Entender o conceito de "contracultura" em que o livro está inserido, é essencial para sua leitura. Porém, para compreender melhor esse contexto, é essencial se desprender de alguns preceitos tidos a respeito de movimentos revolucionários, em especial, o Punk. Hippies e punks fazem parte da contracultura, mas com ramificações de pensamento distintas. Ambos queriam a mudança da sociedade, porém, enquanto os hippies pregavam conceito de paz e amor, os punks partiram para uma abordagem mais agressiva, pois se a revolução não ocorria por meios pacíficos, então ocorreria através da violência. Pichações, solos de guitarra e vozes berrando ao microfone compondo o novo estilo Punk Rock. O movimento lutava essencialmente contra a sociedade capitalista. Os punks viam o capitalismo como uma agressão aos direitos humanos e à igualdade, e por isso, apoiavam um outro tipo de sistema — dentro desse contesto, surgiu o anarco-punk, o ápice do pensamento do movimento.


    A história realmente começa após o assassinato que vai mexer com a vida de todos os personagens, tendo como clímax o famoso blecaute de 1977, que ligará todos os caminhos em um só. Hamilton-Sweeney é o nome de uma das famílias mais populares e ricas de Nova York e pertencem como sobrenome a dois personagens-chaves: Regan e Willian. Dois irmãos que se afastaram depois de muitos altos e baixos em suas vidas, como a morte da mãe, o casamento do pai com outra mulher e a chegada do irmão dela (o "Irmão Demoníaco") aos negócios da família. Porém, seus destinos acabam sendo atravessados por uma série de fatos e a partir de então, terão que enfrentar mais mudanças e diversas surpresas.
    Regan e Willian se ligam a outros personagens que dançam a sua volta formando uma longa teia de relações e acontecimentos. O adúltero Keith, marido de Regan, conecta-se à fotógrafa baleada no Central Park, cujo corpo é encontrado por Mercer, namorado de Willian, um recém-chegado à Nova York e professor de uma escola para meninas. Mercer, por sua vez, acaba sendo interrogado por Larry Pulaski, um detetive em fase de decadência que tem um conhecido repórter chamado Richard, aspirante a ser o escritor de um livro impactante, fazendo com que nessa jornada pela obra perfeita acabe conhecendo Sam e seu pai, se envolvendo mais em sua história do que deveria. E assim segue-se a trilha interminável de personagens e histórias em flashbacks constantes, compondo um thriller eletrizante.
   
"E você, lá fora: de alguma maneira você não está aqui comigo? Quer dizer, quem ainda não sonha com um mundo diferente deste aqui? Quem dentre nós — se isso quer dizer abandonar a insanidade, o mistério, a beleza totalmente inútil de um milhão de Nova Yorks um dia possíveis — está sequer disposto a desistir da esperança?" (p.17)

   Movimentos revolucionários sempre me chamaram a atenção, principalmente porque a história que nos contam nunca é totalmente a história correta. Provavelmente, só seríamos capazes de compreendermos a essência de tais movimentos se fizéssemos partes deles na época em que despontaram. A visão em torno de muitos sempre foi um pouco distorcida por diversos elementos, e hoje pode ser "peneirada" em poucas palavras. Porém, Hallberg fez parte da Nova York revolucionária: acompanhou o desenvolvimento do Punk Rock, a restrição aos direitos de liberdade de expressão, as reprimendas e preconceitos que os grupos mais progressistas sofriam. Pondo toda essa alma em Cidade em Chamas, Hallberg fez com que a obra se tornasse um dicionário dos anos 70.
    Esse foi, definitivamente, o livro com o maior número de páginas que já li. Provavelmente poucas pessoas conseguiram chegar ao final de um livro com 1043 páginas de conteúdo. Mas calma, não é para assustar, pois é perfeitamente possível lê-lo em pouco tempo (talvez um ou dois meses). Todos os gêneros envolvidos — porque não há como definir apenas um — são tremendamente instigantes. O romance passa pelo drama, pela investigação, pelo épico, e por aí vai. É difícil definir um estilo único para o livro, mas digamos que ele tem seu próprio estilo. Nunca li ou ouvi falar de algo parecido, então as chances de se surpreender podem ser muito altas.
     A narração ocorre em terceira pessoa, com foco em cada personagem em capítulos alternantes. O livro se divide em sete partes (chamadas de "Livros") e cada uma tem seu próprio prólogo, indicando o período onde a história daquela parte irá se passar, e ao final delas, há um interlúdio complementando. A escrita de Hallberg é detalhista e reflexiva, não sobrando espaço para hesitação no que diz respeito a construir um cenário na mente do leitor. Sua linguagem é repleta de onomatopeias (um recurso que, particularmente, me agrada), sendo rebuscada e informal ao mesmo tempo.
    Os vícios nas diversas linguagens dos personagens, especialmente dos punks, que criaram gírias próprias dando identidade ao movimento e àquele período, também estão contidos na escrita do autor. O uso de metáforas é excessivo (tornando a leitura poética em alguns momentos), assim como os travessões e parênteses que constantemente pausavam a narração para fazer alguma observação pertinente (também é um recurso que me agrada, como se pode observar através desta e de outras resenhas minhas). Porém, o que mais me chamou a atenção foi que alguns graus de parentesco — pai, mãe, avô — foram escritos com letras maiúsculas. O motivo dessa característica não fica clara, mas o que se pode supor é que isso representou a superioridade dessas pessoas aos olhos dos mais jovens, e então não houve a necessidade de revelar o nome desses parentes em um primeiro momento.
   
"O amor supostamente te levava para além de suas próprias fronteiras, mas de alguma maneira, esse amor por ela — como a música que ele descobriu naquele verão, ou a propositada perda do seu juízo — só tinha era acabado por jogá-lo de volta às praias de si próprio. Era como se o universo estivesse tentando lhe ensinar alguma lição. O desafio, ele imaginava, era se recusar a aprender" (p. 28).

    A riqueza de detalhes da obra a deixou diversificada em muitos aspectos. Primeiro como uma forma de resgatar a cultura instalada em Nova York em meados e final dos anos 70. O conceito de arte, por exemplo, que mudava de pessoa para pessoa, com artistas dispostos a revolucionar esse meio e mostrar que o abstrato também é um tipo de arte que remete aos sentimentos. Dentro dos campos político e econômico, em causa da recessão de 1973-75, havia uma decadência de muitos setores, especialmente industriais (ele põe em foco o imobiliário já que é a área de investimento dos Hamilton-Sweeney) e uma nova forma de pensar — no caso dos punks, algo mais anárquico e esquerdista, sem intervencionismo estatal, que, na visão deles, era o que estava atrapalhando a vida de todo mundo. As drogas e o sexo livres eram os extremos dessa nova composição nova-iorquina.
    Se hoje em dia Nova York é um lugar glamouroso, cheio de referências artísticas e intelectuais, nos anos 70, era um espaço visto como uma má influência, pouco confiável (em todos os sentidos), era como se estivesse à parte dos Estados Unidos. Retratar a cidade enérgica com uma dinâmica incrível, refletindo variados gêneros literários, foi um feito e tanto da parte de Hallberg. Os interlúdios dando um visual diferente e original ao livro, foram bem interessantes, sem falar que é impossível ler Cidade em Chamas sem ficar na expectativa de chegar logo às folhas pretas para saber o quão importante elas são e por que estão ali. As fotografias também são um registro concreto à cidade que nunca dorme e os devidos créditos são dados nas notas finais — que também revelam a quantidade de material em que Hallberg se baseou durante a escrita.

"Ficou olhando o sol surgir por detrás de uma nuvem, e os galhos dos olmos jogados para cima como braços de dançarinos, e as vestes verdes que eles estendiam aos ventos. Detalhes, tudo isso, claro, mas era exatamente o que aquela cidade conferia, e que lhe faltava aos romances: não aquilo de que você precisava para poder viver, mas o que fazia a vida valer a pena para começo de conversa" (p. 203).

    Os personagens foram inúmeros e todos eles tinham graus semelhantes de importância, apesar de terem desempenhado papeis diferentes. Portanto, irei focar nos que mais me chamaram atenção. Primeiramente, a relação complicada de William e Mercer era muito difícil de entender, não só porque eram diferentes entre si, mas também porque não tinham confiança um no outro. William era a caixinha de surpresas e Mercer a caixinha de insegurança — assim, desenvolvi uma relação de amor e ódio por eles. Outro sentimento parecido foi com Charlie, o amigo asmático e careta de Sam; sua evolução foi como uma montanha russa, cheia de lados positivos e negativos, e no final das contas, sua bagunça mental o levou por caminhos tortuosos.
    O grupo de punks ao qual Charlie se alia é a mais alta representatividade dos grupos reais da época. Eles são integrantes de uma banda, Ex Nihilo, chamada antigamente de Ex Post Facto, quando William ainda fazia parte dela. O líder e vocalista atual, Nicky, é o grande elo entre eles e o chamado "manda-chuva" — tudo o que ele quer, ele consegue através de ordens que impõe aos demais. Nicky é o típico revolucionário que tem sua coleção de livros cujos autores são Nietzsche, Marx, Rousseau, entre outros, e nas horas de relaxamento, sua filosofia é mais hippie que punk, com suas músicas de reggae e drogas alucinógenas. 
    Algo curioso é que Hallberg transformou seus atores fictícios em debatedores sociais, retratando o que o cidadão nova-iorquino estava se tornando diante daquele cenário. De uma hora para outra, os personagens estão discutindo sobre política, economia, revolução, o real significado do que é arte, etc. Porém, as coisas não ficaram só no campo da subjetividade. Todos os personagens sofreram evoluções graduais ao longo do enredo — embora nem todas como eu esperava. O desfecho, ao meu ver, não fez jus ao todo da obra, eu realmente esperava um pouco mais, apesar de ter entendido basicamente o significado que o autor buscou dar ao final.


    Esta edição da Companhia das Letras ficou incrivelmente boa — principalmente se comparada à outras edições estrangeiras. A sobriedade e o jogo com os fogos de artifício com reflexos deu um visual muito bacana, além dos prédios com arte de desenho gráfico. O livro não ficou exorbitante em sua largura e é incrível a mágica de fazer com que o livro pareça ter 500 páginas quando na verdade tem 1043 (há livros com menos páginas que são bem mais grossos!). A diagramação ficou ótima assim como a revisão impecável. A diversidade de fontes e cores nos interlúdios (apesar de se limitarem ao retrô do preto e branco) também deu uma boa dinâmica ao livro.


"Para alguém que de fato viveu na Nova York dos anos 1970 — ou seja, para mim — a capacidade de evocação de Hallberg é assustadora... Não são os fatos que dão vida a esta década em Cidade em Chamas. O que Hallberg procura é uma atmosfera, e ele consegue alcançá-la"
— Louis Menand, The New Yorker.

     Cidade em Chamas é um livro extremamente recomendado para diversos públicos, de forma especial à quem se envolve facilmente com um bom drama e tem curiosidade sobre o desenvolvimento dos movimentos de contracultura. A história pode ser fictícia, mas o cenário é bem real. Para quem passou boa parte de sua adolescência nas ruas — cheias de "má influência" — de Nova York, como Hallberg, sabe bem o que está sentindo. E, nas palavras do autor em sua entrevista à revista Época: "Nós costumamos pensar nos tempos passados como diferentes dos atuais, mas o livro parte de um impulso que nos diz que podemos compreender melhor o presente olhando para esse espelho do passado [...] Um tempo de crise também é um tempo em que possibilidades escondidas ganham vida". Não há mensagem melhor a ser deixada.

Primeiro parágrafo: "Em Nova York você pode conseguir que te entreguem de tudo em casa. Pelo menos é por esse princípio que eu me guio. É o meio do verão, o meio da vida. Estou num apartamento que de resto está deserto, na West 16th Street, ouvindo o zumbido tranquilo da geladeira no cômodo ao lado, e apesar de ela só conter uma meia barra mesozoica de manteiga que o pessoal que está me hospedando deixou para trás quando se mandou para a praia, dentro de quarenta minutos posso comer basicamente tudo que me der vontade. Quando eu era novo — mais novo, eu devia dizer —, dava até para pedir drogas pelo telefone. Uns cartões de visitas com um número de área de Manhattan e aquela palavrinha isolada, entregas, ou, na maioria das vezes, alguma bobajada sobre massagens terapêuticas. Não posso acreditar que um dia eu tenha esquecido isso".
Melhores quotes: "Agora a gente está no fim dos anos 70, a destruição da viagem, com as contradições internas desmoronando e estrondando, o retorno dos reprimidos. É o sistema, que engoliu tudo, tendo a sua indigestão. Pelo milagre da dialética surge uma terceira via, que é você dar um cutucãozinho. Você melhora as coisas, as pessoas relaxam. Você piora as coisas, elas se rebelam. Assim, as coisas têm que piorar antes de melhorar. Assim está escrito".
"Cada pessoa na Terra estava lacrada na sua própria capsulazinha, incapaz de tocar ou de ajudar ou até de entender os outros. Você só podia era piorar as coisas".





   


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